sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Pelas mãos de Carolina e Conceição: Memórias, Silenciamentos e Resistência





 











   

”Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?”

 Fabiana Correia Moura

O que há de mais belo na afroliteratura, ou pelo menos, o que enxergo e vivêncio, é o modo como as “escrevivências” destas mulheres e suas existências me fazem menina e pegam-me pela mão conduzindo ao caminho de retorno a minha infância. Um tempo feliz, de brincar na rua, jogar bola, rir alto, contar histórias e tomar banho pelas águas do Rio de Contas em Jequié na segunda-feira, dia de lavar roupa.

 Estas memórias nos acalentam, pois a face abrupta da escassez, do racismo, da exclusão não faz questão de se esconder, por mais que tentemos nos desviar, as “pulsões de morte”, de medo, caminham paralelas as  “pulsões de vida” disputando espaços nas avenidas da vida.

Assim como Carolina Maria de Jesus, sim, “Meu sonho era escrever “, a escrita de uma ‘ vida experimentada” que Elane Nardoto desperta no tecer da colcha de fuxicos de suas filosofias femininas. “ Escrita de si’.

O século XXI é reconhecido como a era do conhecimento, a contemporaneidade é desenhada como um grande axioma complexo formado por conexões subjetivas, emoção, saberes, sentimentos, memórias.

Percebemos um movimento acelerado do tempo. Mas, o que é tempo? Autoquestionamos sobre a constituição da nossa própria realidade? A sensação que temos é que essa nossa “ humanidade “ líquida, volátil transitória submergiu aos encantos e seduções do capitalismo industrial, o status quo, o ter para existir. Os marcadores de sociabilidade da sociedade do consumo interpretam a felicidade nos projetando para fora de si.

Somos tomados pela inaceitação dos nossos corpos, ancestralidades e identidade para assumir as projeções dos padrões eurocêntricos e colonialistas e muitas vezes racistas. O padrão de beleza, as marcas e etiquetas das roupas, a moda hegemônica, os discursos naturalizados materializam uma existência que nos fere, nos adoece e nos mutilam.

Precisamos resgatar quem somos, nossas memórias silenciadas, enterradas ou esquecidas. Vamos abrir os nossos baús, a felicidade está guardada dentro deles, as notas de esperança que buscamos nas projeções externas estão em nós, é preciso coragem para explorar as memórias subterrâneas, vozes silenciadas, choros engolidos e aceitar o desafio que produz transcendência e fé, no sentido mais amplo e pleno da palavra.

O Quarto de Despejo, o diário da vida difícil na favela, não é um romance para simplesmente embalar o sono numa noite de verão ou um dia frio de inverno. É um convite a nos deslocar para dentro e reconhecer nosso papel na trama social elaborada nesta travessia. Carolina compartilha, “Fui catar papel, mas estava indisposta. Vim embora porque o frio era demais. (Jesus, 1993, p. 22). Muitas de nós, Carolinas Marias, nos furtamos da “escrita de si” e da nossa própria história, perdemos a sensibilidade de pensar no frio dos outros/outras, na dor alheia, pois não nos damos conta do frio que enrijece a nossa empatia e solidariedade.

Em meio aos tremores de terra, os redemoinhos da vida, os partos e renascimentos, “ As escritas de si revelam formas e sentidos múltiplos de existencialidade singular-plural, criativa, inventiva do pensar, do agir e do viver junto (Josso, 2007).   O encontro com nossa criança interior pode ser libertador na proporção que nos comprometemos com o processo autocurativo.

Pelas mãos de Carolina e Conceição e o “brilho dos olhos de mainha” rainha, mãe preta, que ensina em sua doce paciência e na harmonia de sua culinária que a vida é uma coleção de momentos doces, amargos outros sem qualquer sabor.

Por fim, pelos “Becos da Memória” entre desconstrução e reconstruções, “Homens, mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim, como amontoados eram os barracos de minha favela” (Evaristo, 2006, p. 21.) Todos eles são constructos em minha identidade.

A narrativa do verbo encarnado, O Cristo vivo, “Amarás o Teu Próximo como a ti mesmo”, tem como premissa o autoconhecimento. A amorosidade interpretativa da nossa própria existência nos autoriza a exercer o amor como práxis, o fazer-si em amor, acolhendo a si e o diverso, superando os estigmas, os padrões minimalistas instituídos pela lógica proselitista.

Pelas mãos de Carolina, Conceição Evaristo, Zenaide[1], Dandaras, Marias e Marielles confrontamos as velhas diásporas e nos passos da resistência e transcendências às cicatrizes recompomos nossas memórias e reconstruímos nossas identidades.     

 

Eu disse: o meu sonho é escrever! Responde o branco: ela é louca. O que as negras devem fazer... É ir pro tanque lavar roupa.  

Carolina Maria de Jesus

EVARISTO, Conceição, Becos da Memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006.

EVARISTO, Conceição Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas, 2015.

JESUS, Carolina Maria de Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática,1993.

JESUS, Carolina Maria de. Meu sonho é escrever...contos inéditos e outros escritos. Organização: Raffaela Fernandez. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018.

JOSSO, Marie-Christine. transformação de si a partir da narração de histórias de vida . Revista Educação Educação Porto Alegre/RS, ano XXX, n. 3 (63), p. 413-438, set./dez. 2007

RIOS, Elane Nardoto, Filosofias Femininas: da vida experimentada. 1ª ed. Ibicaraí Bahia, Via Literarum, 2020.



[1] Dedico este texto a minha mãe, Zenaide Santana Correia, mulher negra, feirante, forjada de luta,  sonhos e amorosidade.


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