quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Projeto Travessias: Entrevista com Ivanildes Moura



Travessia: Quem é você?

Ivanildes Moura dos Santos, mulher preta, professora, escritora , vencedora do premio Zélia Saldanha 2005. Nascida em Jequié, interior da Bahia, filha de Terezinha Moura dos Santos e Antonio Marques dos Santos, ambos falecidos. Estudei em escola pública e fiz  conclusão do magistério em 1987.

Travessia: Qual é sua área de formação, atuação profissional e experiências?

Minha formação em Pedagogia - Uesb / segunda licenciatura em Artes Visuais- Uniasselvi. Pós-graduada em Literatura e Ensino de Literatura/ Especialização  em Antropologia das Culturas afro-brasileiras ambas  pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, atuei na mesma Universidade como pesquisadora do Órgão de Pesquisa em Educação e Relações Étnicas com ênfase em Cultura Afro-brasileira (ODEERE), certificado pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

 Em 2006 atuei como Coordenadora do Núcleo  de Educação para a Diversidade Cultural e Étnico e Gênero,  para a implementação da lei 10/.639/2003 na Secretaria Municipal de Educação de Jequié - Bahia.  Por duas vezes como Coordenadora Pedagógica  numa das escolas do município Ensino Fundamental, anos iniciais. Sempre fui apaixonada por teatro, iniciei meu trabalho numa creche  com teatro infantil onde fiz varias adaptações de peças para as crianças. Atualmente trabalho como professora na área de artes visuais e cultura afro brasileira, onde dou seguimento com teatro com as turmas do Ensino fundamental II

 

 Travessia : Como foi a sua infância e o processo de escolarização, gostaria de nos contar fatos marcantes sobre sua infância e sua vida escolar?

Entrei na escolinha aos sete anos de idade; minha primeira professora se chamava Clemilda. A escola era de pequeno porte e estava localizada na mesma rua em que morava. Não era registrada. Nessa época era costume  reunir as crianças em um espaço qualquer, de preferência residencial, para alfabetizar. 

Costumávamos brincar no terreiro da escolinha e tomava lição do ABC, tabuada antes e depois do recreio. A professora era agradável quando queria, mas, não permitia muita bagunça; qualquer “trabalho” que eu desse durante as aulas, ela contava imediatamente para minha mãe que logo providenciava a correção, ainda que eu não fosse uma criança muito conversadeira na escola.

Porém, algo me marcou muito naquela escolinha, não foram às brincadeiras lamentavelmente, nem as histórias ou as lições, mas, a atitude da professora Clemilda que costumava cortar as unhas das crianças quando achava necessário. Certa vez eu fui para a escola com as unhas sujas de terra, provavelmente de tanto brincar no terreiro de casa, na circunstância a professora olhou para as minhas mãos, pegou uma tesoura e decepou minhas unhas até sangrar.

Cheguei em casa chorando, minha mãe não me perguntou nada, só fez pegar minhas mãos, colocou mertiolate e em seguida se dirigiu até a casa da professora que era no final da rua em que eu morava, local onde funcionava também a escolinha. Não sei o que elas conversaram, só sei que minha mãe voltou para casa com uma “cara de missão cumprida” e no outro dia quando cheguei à escola, a professora pegou minhas mãos manchadas de mertiolate, olhou com expressão de arrependimento, depois não se tocou mais no assunto. Diante disso voltei, sem medo, a me divertir na escolinha da professora Clemilda.

No Ensino Fundamental, antigo primário, entrei numa escola “grande” pela manhã. Usava uma saia azul marinho toda pinçada, uma blusa branca com um escudo estampado no bolso, meias brancas e sapato colegial. Meus cabelos sempre bem penteados, partido ao meio com duas trancas e laço de fita. Era meu primeiro dia de aula, enfim minha 1ª serie. O nome do enorme colégio era “Grupo Escolar Jornalista Fernando Barreto”. Não lembro do nome da segunda professora, mas, recordo que era meiga e atenciosa.

Recordo também da cartilha toda ilustrada. O “A” de avião, o “B” de bola e a cada letra o desenho representado. Não era complicado frequentar a escola pois não era longe, ficava na mesma rua em que morava, a única coisa que me irritava era voltar despenteada para casa todos os dias, não porque minha mãe não caprichava no penteado, é que os colegas insistiam em desmanchar meu cabelo sempre com chacota me chamando de nega do cabelo duro. Sem contar as festas da primavera que nunca fui rainha, tão pouco princesa, não sabiam que tais atitudes poderiam ferir, machucar, bagunçar a cabeça de uma criança, inferiorizá-la, o fato era que a escola estava começando a ficar feia para mim, as faces macabras do racsimo naturalizado.

 Na segunda série voltei um pouco esperançosa, tinha nove anos, acreditava que não teriam mais meninos tão perturbados e que me deixariam em paz, não foi bem assim, eu estava maior e minhas tranças também.

A professora da classe passou despercebida para mim, ela não foi tão importante na minha caminhada, mas lembro de um estagiário negro que era muito carinhoso e bastante atencioso, entretanto, os meninos não ajudavam. Eu acreditava que era pelo fato dele não ser o professor oficial da turma. Um fato me chamou a atenção e me deixou bastante triste, o estagiário, que não me lembro o nome, no dia do encerramento, entrou na sala triste e explicando que não teríamos a festa porque sua sogra tinha falecido e sua esposa não estava em condições emocionais para fazer o bolo. Mesmo assim, carinhosamente ele trouxe umas balinhas de jenipapo no saquinho e um bolo de assadeira sem confeito. Alguns alunos atiraram as balinhas no professor dizendo que era cocô de cabra. O professor precisou da ajuda da professora para conter os colegas e foi embora decepcionado. A escola estava ficando mais feia ainda, não sabia como lidar com ela, fiquei cada vez mais calada.

Na terceira serie, minha professora era alta, loira, falava alto e fazia questão de chamar um a um para tomar a lição em sua carteira. Algumas coisas ficaram guardadas nas minhas lembranças, primeiro o nome da professora, Maísa, segundo o texto “O barquinho amarelo”, lição que me levou a aprender a ler, e uma caixa de chocolate que ganhei de presente por ser a aluna mais calada da turma. Claro, sem esquecer da terrível insistência dos meus colegas de me chamar cabelo duro.

Cheguei “quase intacta” na 4ª serie, era 1976, tinha dez anos, estudei com a temível professora Mirian Coqueiro, para o meu desespero eu não era muito boa em matemática, as sabatinas me matavam, detestava aquela professora carrasca. Porém, foi à única que me deu a chance de dançar quadrilha junina, a parte triste foi que meu parceiro, determinado por ela, não compareceu na festa para não dançar com a neguinha. Foi ai que entendi que era diferente por ser negra e que a minha cor incomodava a ponto de ser muito difícil continuar estudar.

Travessia: Quando ou quais eventos os/as impulsionaram a escolha pela profissão docente?

Quando eu era criança ser professora era o maior orgulho de toda a família. Para a minha família não era diferente, eu percebi que além de ser uma profissão que eu admirava  também seria um grande orgulho, para mim e para meus pais. Então segui os passos a minha irmã mais velha e fiz magistério.

Travessia: Em sua concepção qual/quais são os maiores desafio para a profissão docente no atual contexto?

Vivemos num contexto atípico, porem sempre acreditei que ser professor é conviver com mudanças e aprendizados, nesse contexto cabe a nós se reinventar.

Travessia: Como você avalia a atuação do poder público, dos Conselhos Municipais, Sindicatos e sociedade civil com relação à educação pública neste contexto de pandemia?

Embora o contexto exija que se tenha cautela por conta da atual situação, acredito que seja cedo para uma avaliação mais contundente. Ainda assim, esperamos que se tenha uma maior agilidade principalmente para adequação dos espaços físicos das escolas para receber corpo docentes, discentes e trabalhadores colaboradores da educação com condições seguras. Quanto aos conselhos, sindicatos  esperamos uma atuação mais intensificada. No que diz respeito a sociedade civil seria importante melhor formação e  maior participação para o entendimento e buscas pelos direitos civis.

Travessia: Que avaliação você faz sobre o “Ensino Remoto Emergencial”, suas potencialidades e limites para a realidade brasileira?

Sabemos que o ensino a distancia sempre foi uma realidade positiva para o ensino brasileiro, entretanto não podemos negar que o ensino remoto nesse contexto, com proposito de diminuir o impacto do isolamento social,  apega-se na verdade  a improvisação. A pressa exigiu reprodução de material que nem sempre sai como o esperado uma vez que nem sempre o professor domina as tecnologias necessárias e nem sempre têm formação, recursos e habilidades para produzir material de estudos e  entretenimento virtual,  seria necessário um maior planejamento e investimento para essa modalidade. Outro prejuízo está no fato que nem todos os professores e estudantes têm acesso a internet e as tecnologias necessárias.

Travessia: Conte-nos uma experiência ou fato que você considerou mais marcante em sua jornada profissional:

Estava ainda na graduação, era o ano de 2005, quando surgiu o premio literário Zélia Saldanha, oferecido pela UESB, campus de Vitória da Conquista. Eu tinha escrito uma história que falava de uma princesinha negra que nasceu em Aruanda, cujo nome era Azire. A história trazia em seu contexto toda uma simbologia africana. Esse trabalho fazia parte da minha pesquisa de graduação. Fui incentivada por um grande amigo e professor Marcos Aurelio de Souza a inscrever o trabalho. Assim o fiz. Para minha surpresa a historia “Azire: a Princesinha de Aruanda” foi à grande vencedora do premio na categoria infanto juvenil.

Travessia: Na possibilidade de definir a docência em uma palavra, qual seria o termo?

Compromisso e comprometimento

Travessia: Como você avaliou esta experiência reflexiva de escrita de si e narrativa de aspectos de sua vida, formação e práxis profissional?

Sempre fui uma pessoa muito reservada, falar um pouco sobre minha trajetória através da escrita me transporta a uma viagem pelo tempo. São experiências estranhas quando me remoto a minha infância no período da escolarização, uma sensação de perda, algo que ficou inacabado dentro do meu ser, no entanto, ainda que sejam experiências traumáticas foram situações que de certo modo a “troncos e barrancos” me levaram  a reagir buscando cada vez mais meus direitos e como professora lutando para modificar a historia atual. Como dia a grande poetiza Elisa Lucinda. ”Sei que  não dá pra mudar o começo mais se agente quiser, vai dar pra  mudar o final”.

 

Agradecemos a Professora, Escritora, Mulher Preta, Ivanildes Moura, por nos permitir aprender tanto com sua história de vida e formação!

 

sábado, 2 de janeiro de 2021

Travessias e Agendas Antirracistas


 Racismos no Brasil: Costuras Reflexivas

 

O presente texto é fruto das lives realizadas no ano de 2020 relacionadas com a questão do racismo no Brasil. Diálogos tecidos com mulheres:  a pesquisadora e Assistente Social Marília do Amparo Alves sobre o Racismo e os caminhos de enfrentamentos, encontro amoroso e potente com a pesquisadora Maicelma Maia sobre Infâncias Negras, uma conversa de irmãs com Ivanildes Moura sobre Literatura Infantil Afrobrasileira e por fim, a participação no programa Trilha de Saberes com a Psicanalista Ieda Sampaio cuja temática foi “ Consciência Negra.”

Não sou uma pesquisadora com aprofundamentos teóricos sobre a temática, venho me lançando em leituras que me atravessam no contexto e  convocam para agendas existenciais de enfrentamento e diálogos. São contínuas leituras de obras de autores/autor@s como: Abdias Nascimento, Bell Hooks, Sílvio de Almeida,  Djamila Ribeiro, Chimamanda, Conceição Evaristo, Eduardo Bonilla-Silva, Sueli Carneiro, Maicelma Maia, entre outras/os/es. Autorizo-me experimentar esta escrita “ de dentro da minha pele”.

Os fios que tecem nossas memórias e histórias de infâncias negras no Brasil são linhas de resistência. Infâncias costuradas pelos racismos, em suas múltiplas nuances, requintes de dor. Certamente é por isso que o conceito de "dororidade" nos compreende tanto. Uma menina negra, filha de mãe preta retinta e pai branco, de família branca, ou seja, o cenário assimétrico inaceitável para as estruturas coloniais que atravessam este país e reproduz sempre os arquétipos que transitam entre "Casa grande e Senzala". São marcadores do inconsciente coletivo da sociedade brasileira, “do crente ao ateu.” As infâncias negras costuradas pelo racismo estrutural constituem o tecido da minha própria existência.

O sentimento de vergonha e desprezo que era verbalizado pela minha família paterna em virtude da cor da nossa pele, por mais doloroso que seja, é o racismo sutil  o que mais me incomoda. 

Escrever este texto em pleno século XXI, exatamente em 28 de dezembro de 2020 não é por acaso. Após um final de semana marcado por diálogos desgostosos e desgastantes com  “neopetencostais” puramente narcisistas, cutucou de alguma maneira a criança um dia ferida e marcada pelas cicatrizes do racismo e provocou-me a escrever. Aprendi com uma amiga que a escrita é um processo de autocura, mas, também uma ação revolucionária. 

No momento que tomo consciência da minha existência como mulher negra, sobre ser e estar no mundo, autopertença, caminhar de si e para si, anunciando minha própria liberdade , erguendo a voz para enfrentar os olhares e o desprezo, vivo e anuncio meu renascimento, meu grito. É visível que dentro da lógica inter-racial  de forma cônscia ou inconscientemente a "branquitude" é historicamente privilegiada, mas quase nunca  estão efetivamente dispostos a questionar estes modelos e estruturas.

Nas disputas de espaços, de ocupação, de condição de vida e existência o corpo negro sofre as penas do racismo escamoteado pela famigerada narrativa pseudocristã, somos todos irmãos, filhos do mesmo pai, somos humanos, o que basta é ter consciência humana, puro engodo.

O discurso da igualdade entre os “homens” escamoteia a realidade e perpetua as faces do racismo. É na verdade um dos remendos institucionais que descaracteriza os horrores e violências que sofremos de dentro da nossa realidade cotidiana. Os corpos cravejados de balas e encarcerados neste país nos dizem muito sobre os nossos enfrentamentos.  

As infâncias não-brancas são feridas diuturnamente. O fetiche, os abusos, os apelidos pejorativos, os comentários sobre a textura do cabelo, assinalam as assimetrias que costuram os estágios de desenvolvimento de uma criança negra. Sou forjada neste cenário de inaceitação. Uma história tricotada com pontos de pobreza, dor, exclusão e ao mesmo tempo, alegre, resiliente pela correlação de forças, afetos e acolhimento.

A Doutora Maria Eurico, pesquisadora sobre racismo institucional na infância ressalta os impactos do pensamento conservador sobre as crianças brasileiras, na sua condição de gênero, classe que traduz-se em tratamentos desumanos, excludentes, degradantes sobre a vida das crianças e toda esta rigidez moralista desdobra-se em diversas formas de violência que perpassam o cotidiano das famílias.

As minhas travessias existenciais e profissionais como estudante,  professora, pedagoga e psicopedagoga, autorizam-me afirmar que o racismo "individual, estrutural, institucional", atinge visceralmente as infâncias negras. Favorecem as engrenagens neoliberais reprodutoras da segregação e mantenedoras das estruturas que corroboram com uso da “ carne negra” como mero objeto, “a mais barata do mercado” ferramenta de trabalho, incivilizados, coisificados. Neste contexto, como pontua Ailton Krenak, deixamos de ter governos na liderança dos Estados, o comando está nas mãos das grandes corporações. Os empresários e o sistema bancário decidem a vida.

O racismo, enquanto uma das facetas da sociedade moderna, é único, pois ainda estrutura-se por um denominador comum: a exploração de um grupo sobre o outro, a partir de critérios étnico-raciais. Além disso, projeta-se na vida pública, na família, nas instituições, nas ciências, enfim, em todas as esferas das relações humanas (EURICO,2020).

Eurico destaca que é extremamente potente e necessário problematizar a realidade do racismo estrutural como um dos caminhos possíveis, reais e relevantes para transformação da sociedade. A relação raça, classe, gênero toma como base de sustentação o tripé exclusão, precarização e exploração, é o que de fato compõe a moderna divisão social do trabalho. São estes os ingredientes funcionais da engrenagem neoliberal que visa o enriquecimento de uma determinada classe, neste sistema, os corpos não brancos não se enquadram, são meras peças da grande máquina.

Reconfigurar este sistema exige movimentos de mudança nos modos de produzir, nas concepções de necessidades e consumo, redistribuição de riquezas de forma equânime. Este upgrade exige um novo modo de caminhar.

A superação das estruturas racistas, do arquétipo do sujeito universal, do homem branco, rico e bem sucedido, é imperativo. Esta ruptura de obstáculos e problematização dos estigmas implicam em novas formas de construir a educação, escolarização, os currículos, a universidade, a pesquisa, a política, a economia e a gestão pública.

E por fim, “se o racismo se reatualiza, as formas de combate também precisam ser reinventadas.” A escola, as instituições, a política, a sociedade civil não podem se omitir deste debate, sob pena de serem destituídos da legitimidade da organização civil do Estado Democrático de Direito  como espaço de formação e construção da existência humana respeitando biomiméticamente sua natureza diversa e plural. 

Afinal, na lógica do necropoder, “vidas negras” de fato importam? O que nos dizem as estatísticas? O que o Estado Brasileiro, a gestão pública, as instituições têm feito para equacionar a dívida histórica e reconfigurar esta realidade?     

  

EURICO, Maria Campos. Tecendo Tramas a cerca de uma infância sem racismo. Revista da Faculdade de Serviço Social da UERJ. Rio de Janeiro ( 1º sem 2020- n.45.v19,p. 69-83)

 

Fabiana Correia Moura, Mulher Negra, feminista, Pedagoga, Mestra em Educação Científica e Formação de Professores, Especialista em Direitos Humanos (UESB), Coordenadora Pedagógica no Colégio da Polícia Militar Professor Poeta Luís Neves Cotrim


 

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