sábado, 2 de janeiro de 2021

Travessias e Agendas Antirracistas


 Racismos no Brasil: Costuras Reflexivas

 

O presente texto é fruto das lives realizadas no ano de 2020 relacionadas com a questão do racismo no Brasil. Diálogos tecidos com mulheres:  a pesquisadora e Assistente Social Marília do Amparo Alves sobre o Racismo e os caminhos de enfrentamentos, encontro amoroso e potente com a pesquisadora Maicelma Maia sobre Infâncias Negras, uma conversa de irmãs com Ivanildes Moura sobre Literatura Infantil Afrobrasileira e por fim, a participação no programa Trilha de Saberes com a Psicanalista Ieda Sampaio cuja temática foi “ Consciência Negra.”

Não sou uma pesquisadora com aprofundamentos teóricos sobre a temática, venho me lançando em leituras que me atravessam no contexto e  convocam para agendas existenciais de enfrentamento e diálogos. São contínuas leituras de obras de autores/autor@s como: Abdias Nascimento, Bell Hooks, Sílvio de Almeida,  Djamila Ribeiro, Chimamanda, Conceição Evaristo, Eduardo Bonilla-Silva, Sueli Carneiro, Maicelma Maia, entre outras/os/es. Autorizo-me experimentar esta escrita “ de dentro da minha pele”.

Os fios que tecem nossas memórias e histórias de infâncias negras no Brasil são linhas de resistência. Infâncias costuradas pelos racismos, em suas múltiplas nuances, requintes de dor. Certamente é por isso que o conceito de "dororidade" nos compreende tanto. Uma menina negra, filha de mãe preta retinta e pai branco, de família branca, ou seja, o cenário assimétrico inaceitável para as estruturas coloniais que atravessam este país e reproduz sempre os arquétipos que transitam entre "Casa grande e Senzala". São marcadores do inconsciente coletivo da sociedade brasileira, “do crente ao ateu.” As infâncias negras costuradas pelo racismo estrutural constituem o tecido da minha própria existência.

O sentimento de vergonha e desprezo que era verbalizado pela minha família paterna em virtude da cor da nossa pele, por mais doloroso que seja, é o racismo sutil  o que mais me incomoda. 

Escrever este texto em pleno século XXI, exatamente em 28 de dezembro de 2020 não é por acaso. Após um final de semana marcado por diálogos desgostosos e desgastantes com  “neopetencostais” puramente narcisistas, cutucou de alguma maneira a criança um dia ferida e marcada pelas cicatrizes do racismo e provocou-me a escrever. Aprendi com uma amiga que a escrita é um processo de autocura, mas, também uma ação revolucionária. 

No momento que tomo consciência da minha existência como mulher negra, sobre ser e estar no mundo, autopertença, caminhar de si e para si, anunciando minha própria liberdade , erguendo a voz para enfrentar os olhares e o desprezo, vivo e anuncio meu renascimento, meu grito. É visível que dentro da lógica inter-racial  de forma cônscia ou inconscientemente a "branquitude" é historicamente privilegiada, mas quase nunca  estão efetivamente dispostos a questionar estes modelos e estruturas.

Nas disputas de espaços, de ocupação, de condição de vida e existência o corpo negro sofre as penas do racismo escamoteado pela famigerada narrativa pseudocristã, somos todos irmãos, filhos do mesmo pai, somos humanos, o que basta é ter consciência humana, puro engodo.

O discurso da igualdade entre os “homens” escamoteia a realidade e perpetua as faces do racismo. É na verdade um dos remendos institucionais que descaracteriza os horrores e violências que sofremos de dentro da nossa realidade cotidiana. Os corpos cravejados de balas e encarcerados neste país nos dizem muito sobre os nossos enfrentamentos.  

As infâncias não-brancas são feridas diuturnamente. O fetiche, os abusos, os apelidos pejorativos, os comentários sobre a textura do cabelo, assinalam as assimetrias que costuram os estágios de desenvolvimento de uma criança negra. Sou forjada neste cenário de inaceitação. Uma história tricotada com pontos de pobreza, dor, exclusão e ao mesmo tempo, alegre, resiliente pela correlação de forças, afetos e acolhimento.

A Doutora Maria Eurico, pesquisadora sobre racismo institucional na infância ressalta os impactos do pensamento conservador sobre as crianças brasileiras, na sua condição de gênero, classe que traduz-se em tratamentos desumanos, excludentes, degradantes sobre a vida das crianças e toda esta rigidez moralista desdobra-se em diversas formas de violência que perpassam o cotidiano das famílias.

As minhas travessias existenciais e profissionais como estudante,  professora, pedagoga e psicopedagoga, autorizam-me afirmar que o racismo "individual, estrutural, institucional", atinge visceralmente as infâncias negras. Favorecem as engrenagens neoliberais reprodutoras da segregação e mantenedoras das estruturas que corroboram com uso da “ carne negra” como mero objeto, “a mais barata do mercado” ferramenta de trabalho, incivilizados, coisificados. Neste contexto, como pontua Ailton Krenak, deixamos de ter governos na liderança dos Estados, o comando está nas mãos das grandes corporações. Os empresários e o sistema bancário decidem a vida.

O racismo, enquanto uma das facetas da sociedade moderna, é único, pois ainda estrutura-se por um denominador comum: a exploração de um grupo sobre o outro, a partir de critérios étnico-raciais. Além disso, projeta-se na vida pública, na família, nas instituições, nas ciências, enfim, em todas as esferas das relações humanas (EURICO,2020).

Eurico destaca que é extremamente potente e necessário problematizar a realidade do racismo estrutural como um dos caminhos possíveis, reais e relevantes para transformação da sociedade. A relação raça, classe, gênero toma como base de sustentação o tripé exclusão, precarização e exploração, é o que de fato compõe a moderna divisão social do trabalho. São estes os ingredientes funcionais da engrenagem neoliberal que visa o enriquecimento de uma determinada classe, neste sistema, os corpos não brancos não se enquadram, são meras peças da grande máquina.

Reconfigurar este sistema exige movimentos de mudança nos modos de produzir, nas concepções de necessidades e consumo, redistribuição de riquezas de forma equânime. Este upgrade exige um novo modo de caminhar.

A superação das estruturas racistas, do arquétipo do sujeito universal, do homem branco, rico e bem sucedido, é imperativo. Esta ruptura de obstáculos e problematização dos estigmas implicam em novas formas de construir a educação, escolarização, os currículos, a universidade, a pesquisa, a política, a economia e a gestão pública.

E por fim, “se o racismo se reatualiza, as formas de combate também precisam ser reinventadas.” A escola, as instituições, a política, a sociedade civil não podem se omitir deste debate, sob pena de serem destituídos da legitimidade da organização civil do Estado Democrático de Direito  como espaço de formação e construção da existência humana respeitando biomiméticamente sua natureza diversa e plural. 

Afinal, na lógica do necropoder, “vidas negras” de fato importam? O que nos dizem as estatísticas? O que o Estado Brasileiro, a gestão pública, as instituições têm feito para equacionar a dívida histórica e reconfigurar esta realidade?     

  

EURICO, Maria Campos. Tecendo Tramas a cerca de uma infância sem racismo. Revista da Faculdade de Serviço Social da UERJ. Rio de Janeiro ( 1º sem 2020- n.45.v19,p. 69-83)

 

Fabiana Correia Moura, Mulher Negra, feminista, Pedagoga, Mestra em Educação Científica e Formação de Professores, Especialista em Direitos Humanos (UESB), Coordenadora Pedagógica no Colégio da Polícia Militar Professor Poeta Luís Neves Cotrim


 

2 comentários:

  1. É sempre uma alegria tê-la por perto, Fabi. Mas trilhar com você me põe no lugar de aluna, que quer/precisa muito aprender.

    Então, amiga, obrigada por ter aceitado nosso convite e por ser essa pessoa linda, provocadora, professora, empoderadora de tantas outras meninas.

    É na estrada da vida que construimos nosso caminho.

    Sigamos.

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