Racismos no Brasil: Costuras Reflexivas
O presente texto é fruto das lives realizadas no
ano de 2020 relacionadas com a questão do racismo no Brasil. Diálogos tecidos
com mulheres: a pesquisadora e Assistente Social Marília do Amparo Alves sobre o Racismo
e os caminhos de enfrentamentos, encontro amoroso e potente com a pesquisadora
Maicelma Maia sobre Infâncias Negras, uma conversa de irmãs com Ivanildes Moura
sobre Literatura Infantil Afrobrasileira e por fim, a participação no programa Trilha de
Saberes com a Psicanalista Ieda Sampaio cuja temática foi “ Consciência Negra.”
Não sou uma
pesquisadora com aprofundamentos teóricos sobre a temática, venho me lançando
em leituras que me atravessam no contexto e convocam para agendas existenciais
de enfrentamento e diálogos. São contínuas leituras de obras de autores/autor@s como:
Abdias Nascimento, Bell Hooks, Sílvio de Almeida, Djamila Ribeiro, Chimamanda, Conceição
Evaristo, Eduardo Bonilla-Silva, Sueli Carneiro, Maicelma Maia, entre outras/os/es. Autorizo-me
experimentar esta escrita “ de dentro da minha pele”.
Os fios que tecem
nossas memórias e histórias de infâncias negras no Brasil são linhas de
resistência. Infâncias costuradas pelos racismos, em suas múltiplas nuances, requintes
de dor. Certamente é por isso que o conceito de "dororidade" nos compreende
tanto. Uma menina negra, filha de mãe preta retinta e pai branco, de família
branca, ou seja, o cenário assimétrico inaceitável para as estruturas coloniais
que atravessam este país e reproduz sempre os arquétipos que transitam entre "Casa
grande e Senzala". São marcadores do inconsciente coletivo da sociedade
brasileira, “do crente ao ateu.” As infâncias negras costuradas pelo racismo
estrutural constituem o tecido da minha própria existência.
O sentimento de vergonha e desprezo que era verbalizado pela minha família paterna em virtude da cor da nossa pele, por mais doloroso que seja, é o racismo sutil o que mais me incomoda.
Escrever este texto em pleno século XXI, exatamente em 28 de
dezembro de 2020 não é por acaso. Após um final de semana marcado por diálogos
desgostosos e desgastantes com “neopetencostais” puramente narcisistas, cutucou de alguma maneira a criança um dia ferida e marcada pelas cicatrizes do
racismo e provocou-me a escrever. Aprendi com uma amiga que a escrita é um
processo de autocura, mas, também uma ação revolucionária.
No momento que tomo
consciência da minha existência como mulher negra, sobre ser e estar no mundo,
autopertença, caminhar de si e para si, anunciando minha própria liberdade , erguendo
a voz para enfrentar os olhares e o desprezo, vivo e anuncio meu renascimento, meu grito. É visível
que dentro da lógica inter-racial de
forma cônscia ou inconscientemente a "branquitude" é historicamente privilegiada, mas quase nunca estão efetivamente dispostos a questionar estes modelos e estruturas.
Nas disputas de
espaços, de ocupação, de condição de vida e existência o corpo negro sofre as
penas do racismo escamoteado pela famigerada narrativa pseudocristã,
somos todos irmãos, filhos do mesmo pai, somos humanos, o que basta é ter
consciência humana, puro engodo.
O discurso da igualdade
entre os “homens” escamoteia a realidade e perpetua as faces do racismo. É na
verdade um dos remendos institucionais que descaracteriza os horrores e
violências que sofremos de dentro da nossa realidade cotidiana. Os corpos
cravejados de balas e encarcerados neste país nos dizem muito sobre os nossos
enfrentamentos.
As infâncias
não-brancas são feridas diuturnamente. O fetiche, os abusos, os apelidos
pejorativos, os comentários sobre a textura do cabelo, assinalam as assimetrias
que costuram os estágios de desenvolvimento de uma criança negra. Sou forjada
neste cenário de inaceitação. Uma história tricotada com pontos de pobreza,
dor, exclusão e ao mesmo tempo, alegre, resiliente pela correlação de forças,
afetos e acolhimento.
A Doutora Maria Eurico,
pesquisadora sobre racismo institucional na infância ressalta os impactos do pensamento
conservador sobre as crianças brasileiras, na sua condição de gênero, classe
que traduz-se em tratamentos desumanos, excludentes, degradantes sobre a vida
das crianças e toda esta rigidez moralista desdobra-se em diversas formas de
violência que perpassam o cotidiano das famílias.
As minhas travessias
existenciais e profissionais como estudante,
professora, pedagoga e psicopedagoga, autorizam-me afirmar que o racismo "individual, estrutural, institucional", atinge visceralmente as infâncias negras.
Favorecem as engrenagens neoliberais reprodutoras da segregação e mantenedoras
das estruturas que corroboram com uso da “ carne negra” como mero objeto, “a mais barata do mercado” ferramenta de
trabalho, incivilizados, coisificados. Neste contexto, como pontua Ailton
Krenak, deixamos de ter governos na liderança dos Estados, o comando está nas
mãos das grandes corporações. Os empresários e o sistema bancário decidem a
vida.
O racismo, enquanto uma
das facetas da sociedade moderna, é único, pois ainda estrutura-se por um
denominador comum: a exploração de um grupo sobre o outro, a partir de
critérios étnico-raciais. Além disso, projeta-se na vida pública, na família,
nas instituições, nas ciências, enfim, em todas as esferas das relações humanas
(EURICO,2020).
Eurico destaca que é extremamente potente e necessário problematizar a realidade
do racismo estrutural como um dos caminhos possíveis, reais e relevantes para
transformação da sociedade. A relação raça, classe, gênero toma como base de
sustentação o tripé exclusão, precarização e exploração, é o que de fato compõe
a moderna divisão social do trabalho. São estes os ingredientes funcionais da
engrenagem neoliberal que visa o enriquecimento de uma determinada classe,
neste sistema, os corpos não brancos não se enquadram, são meras peças da
grande máquina.
Reconfigurar este
sistema exige movimentos de mudança nos modos de produzir, nas concepções de
necessidades e consumo, redistribuição de riquezas de forma equânime. Este
upgrade exige um novo modo de caminhar.
A superação das
estruturas racistas, do arquétipo do sujeito universal, do homem branco, rico e
bem sucedido, é imperativo. Esta ruptura de obstáculos e problematização dos
estigmas implicam em novas formas de construir a educação, escolarização, os
currículos, a universidade, a pesquisa, a política, a economia e a gestão
pública.
E por fim, “se o
racismo se reatualiza, as formas de combate também precisam ser reinventadas.”
A escola, as instituições, a política, a sociedade civil não podem se omitir
deste debate, sob pena de serem destituídos da legitimidade da organização
civil do Estado Democrático de Direito como espaço de formação e construção da existência humana respeitando biomiméticamente sua natureza diversa e
plural.
Afinal, na lógica do
necropoder, “vidas negras” de fato importam? O que nos dizem as
estatísticas? O que o Estado Brasileiro, a gestão pública, as instituições têm
feito para equacionar a dívida histórica e reconfigurar esta realidade?
EURICO,
Maria Campos. Tecendo Tramas a cerca de uma infância sem racismo. Revista da Faculdade de Serviço Social da
UERJ. Rio de Janeiro ( 1º sem 2020- n.45.v19,p. 69-83)
Fabiana Correia Moura, Mulher Negra, feminista,
Pedagoga, Mestra em Educação Científica e Formação de Professores, Especialista
em Direitos Humanos (UESB), Coordenadora Pedagógica no Colégio da Polícia
Militar Professor Poeta Luís Neves Cotrim
É sempre uma alegria tê-la por perto, Fabi. Mas trilhar com você me põe no lugar de aluna, que quer/precisa muito aprender.
ResponderExcluirEntão, amiga, obrigada por ter aceitado nosso convite e por ser essa pessoa linda, provocadora, professora, empoderadora de tantas outras meninas.
É na estrada da vida que construimos nosso caminho.
Sigamos.
Ieda Sampaio, por mais gente como você no mundo!
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