Travessia: Quem é
você?
Ivanildes
Moura dos Santos, mulher preta, professora, escritora , vencedora do premio Zélia
Saldanha 2005. Nascida em Jequié, interior da Bahia, filha de Terezinha Moura
dos Santos e Antonio Marques dos Santos, ambos falecidos. Estudei em escola
pública e fiz conclusão do magistério em
1987.
Travessia: Qual é
sua área de formação, atuação profissional e experiências?
Minha
formação em Pedagogia - Uesb / segunda licenciatura em Artes Visuais- Uniasselvi.
Pós-graduada em Literatura e Ensino de Literatura/ Especialização em Antropologia das Culturas afro-brasileiras
ambas pela Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia, atuei na mesma Universidade como pesquisadora do Órgão de
Pesquisa em Educação e Relações Étnicas com ênfase em Cultura Afro-brasileira
(ODEERE), certificado pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico).
Em 2006 atuei como Coordenadora do Núcleo de Educação para a Diversidade Cultural e
Étnico e Gênero, para a implementação da
lei 10/.639/2003 na Secretaria Municipal de Educação de Jequié - Bahia. Por duas vezes como Coordenadora Pedagógica numa das escolas do município Ensino Fundamental, anos iniciais. Sempre fui apaixonada por teatro, iniciei meu trabalho numa creche com
teatro infantil onde fiz varias adaptações de peças para as crianças. Atualmente
trabalho como professora na área de artes visuais e cultura afro brasileira,
onde dou seguimento com teatro com as turmas do Ensino fundamental II
Travessia : Como foi a sua infância e o processo
de escolarização, gostaria de nos contar fatos marcantes sobre sua infância e
sua vida escolar?
Entrei na escolinha
aos sete anos de idade; minha primeira professora se chamava Clemilda. A escola
era de pequeno porte e estava localizada na mesma rua em que morava. Não era
registrada. Nessa época era costume reunir as crianças em um espaço qualquer,
de preferência residencial, para alfabetizar.
Costumávamos brincar no terreiro
da escolinha e tomava lição do ABC, tabuada antes e depois do recreio. A
professora era agradável quando queria, mas, não permitia muita bagunça; qualquer
“trabalho” que eu desse durante as aulas, ela contava imediatamente para minha
mãe que logo providenciava a correção, ainda que eu não fosse uma criança muito
conversadeira na escola.
Porém, algo me
marcou muito naquela escolinha, não foram às brincadeiras lamentavelmente, nem as histórias ou as
lições, mas, a atitude da professora Clemilda que costumava cortar as unhas das
crianças quando achava necessário. Certa vez eu fui para a escola com as unhas
sujas de terra, provavelmente de tanto brincar no terreiro de casa, na circunstância a
professora olhou para as minhas mãos, pegou uma tesoura e decepou minhas unhas
até sangrar.
Cheguei em casa
chorando, minha mãe não me perguntou nada, só fez pegar minhas mãos, colocou
mertiolate e em seguida se dirigiu até a casa da professora que era no final da
rua em que eu morava, local onde funcionava também a escolinha. Não sei o que
elas conversaram, só sei que minha mãe voltou para casa com uma “cara de missão
cumprida” e no outro dia quando cheguei à escola, a professora pegou minhas
mãos manchadas de mertiolate, olhou com expressão de arrependimento, depois não
se tocou mais no assunto. Diante disso voltei, sem medo, a me divertir na escolinha
da professora Clemilda.
No Ensino
Fundamental, antigo primário, entrei numa escola “grande” pela manhã. Usava uma
saia azul marinho toda pinçada, uma blusa branca com um escudo estampado no
bolso, meias brancas e sapato colegial. Meus cabelos sempre bem penteados,
partido ao meio com duas trancas e laço de fita. Era meu primeiro dia de aula,
enfim minha 1ª serie. O nome do enorme colégio era “Grupo Escolar Jornalista
Fernando Barreto”. Não lembro do nome da segunda professora, mas, recordo que
era meiga e atenciosa.
Recordo também da
cartilha toda ilustrada. O “A” de avião, o “B” de bola e a cada letra o desenho
representado. Não era complicado frequentar a escola pois não era longe, ficava
na mesma rua em que morava, a única coisa que me irritava era voltar despenteada
para casa todos os dias, não porque minha mãe não caprichava no penteado, é que
os colegas insistiam em desmanchar meu cabelo sempre com chacota me chamando de
nega do cabelo duro. Sem contar as festas da primavera que nunca fui rainha, tão
pouco princesa, não sabiam que tais atitudes poderiam ferir, machucar, bagunçar
a cabeça de uma criança, inferiorizá-la, o fato era que a escola estava começando a ficar feia
para mim, as faces macabras do racsimo naturalizado.
Na segunda série voltei um pouco esperançosa,
tinha nove anos, acreditava que não teriam mais meninos tão perturbados e que
me deixariam em paz, não foi bem assim, eu estava maior e minhas tranças
também.
A professora da
classe passou despercebida para mim, ela não foi tão importante na minha
caminhada, mas lembro de um estagiário negro que era muito carinhoso e bastante
atencioso, entretanto, os meninos não ajudavam. Eu acreditava que era pelo
fato dele não ser o professor oficial da turma. Um fato me chamou a atenção e
me deixou bastante triste, o estagiário, que não me lembro o nome, no dia do
encerramento, entrou na sala triste e explicando que não teríamos a festa
porque sua sogra tinha falecido e sua esposa não estava em condições emocionais para fazer o bolo. Mesmo assim, carinhosamente ele trouxe umas balinhas de jenipapo no saquinho e um bolo de assadeira sem
confeito. Alguns alunos atiraram as balinhas no professor dizendo que era cocô
de cabra. O professor precisou da ajuda da professora para conter os colegas e foi embora
decepcionado. A escola estava ficando mais feia ainda, não sabia como lidar com
ela, fiquei cada vez mais calada.
Na terceira serie,
minha professora era alta, loira, falava alto e fazia questão de chamar um a
um para tomar a lição em sua carteira. Algumas coisas ficaram guardadas nas
minhas lembranças, primeiro o nome da professora, Maísa, segundo o texto “O
barquinho amarelo”, lição que me levou a aprender a ler, e uma caixa de
chocolate que ganhei de presente por ser a aluna mais calada da turma. Claro, sem esquecer da terrível insistência dos meus colegas de me chamar cabelo duro.
Cheguei “quase
intacta” na 4ª serie, era 1976, tinha dez anos, estudei com a temível
professora Mirian Coqueiro, para o meu desespero eu não era muito boa em
matemática, as sabatinas me matavam, detestava aquela professora carrasca. Porém,
foi à única que me deu a chance de dançar quadrilha junina, a parte triste foi que meu
parceiro, determinado por ela, não compareceu na festa para não dançar com a
neguinha. Foi ai que entendi que era diferente por ser negra e que a minha cor
incomodava a ponto de ser muito difícil continuar estudar.
Travessia:
Quando ou quais eventos os/as impulsionaram a escolha pela profissão docente?
Quando
eu era criança ser professora era o maior orgulho de toda a família. Para a
minha família não era diferente, eu percebi que além de ser uma profissão que
eu admirava também seria um grande
orgulho, para mim e para meus pais. Então segui os passos a
minha irmã mais velha e fiz magistério.
Travessia: Em sua
concepção qual/quais são os maiores desafio para a profissão docente no atual
contexto?
Vivemos
num contexto atípico, porem sempre acreditei que ser professor é conviver com
mudanças e aprendizados, nesse contexto cabe a nós se reinventar.
Travessia: Como
você avalia a atuação do poder público, dos Conselhos Municipais, Sindicatos e
sociedade civil com relação à educação pública neste contexto de pandemia?
Embora
o contexto exija que se tenha cautela por conta da atual situação, acredito
que seja cedo para uma avaliação mais contundente. Ainda assim, esperamos que se
tenha uma maior agilidade principalmente para adequação dos espaços físicos das
escolas para receber corpo docentes, discentes e trabalhadores
colaboradores da educação com condições seguras. Quanto aos conselhos, sindicatos esperamos uma atuação mais intensificada. No que diz respeito a sociedade
civil seria importante melhor formação e maior participação para o entendimento e buscas pelos
direitos civis.
Travessia:
Que avaliação você faz sobre o “Ensino Remoto Emergencial”, suas
potencialidades e limites para a realidade brasileira?
Sabemos
que o ensino a distancia sempre foi uma realidade positiva para o ensino
brasileiro, entretanto não podemos negar que o ensino remoto nesse contexto, com
proposito de diminuir o impacto do isolamento social, apega-se na verdade a improvisação. A pressa exigiu reprodução de material que nem sempre sai como o esperado uma vez que nem sempre o professor
domina as tecnologias necessárias e nem sempre têm formação, recursos e habilidades para produzir material de estudos e entretenimento virtual, seria necessário um maior planejamento e investimento para essa
modalidade. Outro prejuízo está no fato que nem todos os professores e estudantes têm acesso a internet e as tecnologias necessárias.
Travessia:
Conte-nos uma experiência ou fato que você considerou mais marcante em sua
jornada profissional:
Estava ainda na
graduação, era o ano de 2005, quando surgiu o premio literário Zélia Saldanha,
oferecido pela UESB, campus de Vitória da Conquista. Eu tinha escrito uma
história que falava de uma princesinha negra que nasceu em Aruanda, cujo nome
era Azire. A história trazia em seu contexto toda uma simbologia africana. Esse
trabalho fazia parte da minha pesquisa de graduação. Fui incentivada por um
grande amigo e professor Marcos Aurelio de Souza a inscrever o trabalho. Assim
o fiz. Para minha surpresa a historia “Azire: a Princesinha de Aruanda” foi à
grande vencedora do premio na categoria infanto juvenil.
Travessia: Na
possibilidade de definir a docência em uma palavra, qual seria o termo?
Compromisso
e comprometimento
Travessia: Como
você avaliou esta experiência reflexiva de escrita de si e narrativa de
aspectos de sua vida, formação e práxis profissional?
Sempre
fui uma pessoa muito reservada, falar um pouco sobre minha trajetória através
da escrita me transporta a uma viagem pelo tempo. São experiências estranhas
quando me remoto a minha infância no período da escolarização, uma sensação de
perda, algo que ficou inacabado dentro do meu ser, no entanto, ainda que sejam
experiências traumáticas foram situações que de certo modo a “troncos e
barrancos” me levaram a reagir buscando
cada vez mais meus direitos e como professora lutando para modificar a historia atual.
Como dia a grande poetiza Elisa Lucinda. ”Sei que não dá pra mudar o começo mais se agente
quiser, vai dar pra mudar o final”.
Agradecemos
a Professora, Escritora, Mulher Preta, Ivanildes Moura, por nos permitir
aprender tanto com sua história de vida e formação!